Maristela de Oliveira Meira 1 *
O livro Quarto de Despejo da escritora Carolina Maria de Jesus foi publicado
pela primeira vez no ano de 1960 2 . Logo de início, Audálio Dantas, o jornalista que
auxiliou Carolina Maria de Jesus a publicar seus vinte cadernos utilizados como diário
(cadernos esses coletados no lixo por Carolina) faz uma breve narrativa de como ele
entrou na vida da autora além de situar leitores e leitoras do contexto onde foi produzido
tal obra.
Para os leitores desta edição de Quarto de despejo, é preciso que eu
me apresente. Entrei na história deste livro como jornalista, verde
ainda, com a emoção e a certeza de quem acreditava poder mudar o
mundo. Ou, pelo menos, a favela do Canindé e outras favelas
espalhadas pelo Brasil. Repórter, fui encarregado de escrever uma
matéria sobre uma favela que se expandia na beira do rio Tietê, no
bairro do Canindé. Lá, no rebuliço favelado, encontrei a negra
Carolina, que logo se colocou como alguém que tinha o que dizer. E
tinha! Tanto que, na hora, desisti de escrever a reportagem. (JESUS,
1963, p. 3).
Mas quem é Carolina Maria de Jesus?
Nascida no estado de Minas Gerais, Carolina Maria de Jesus, ou simplesmente
Carolina como gosta de ser chamada, estudou até o segundo ano de uma escola primária
na cidade de Sacramento. Ainda na adolescência, a autora de Quarto de Despejo foi
morar em São Paulo. Mulher, preta, mãe solteira de três filhos (José Carlos, João José e
Vera Eunice), a escritora residia na favela do Canindé, na rua A, barraco nº 9, e foi
exatamente aí, que Carolina escreveu o livro Quarto de Despejo, um livro tão intenso,
original e polêmico que na época de sua publicação atingiu “as alturas dos 100 mil
exemplares” (JESUS, 1963, p. 4), algo que, nas palavras de Audálio Dantas, “rompeu a
rotina das magras edições de dois, três mil exemplares, no Brasil” (JESUS, 1963, p. 4).
Para conhecer melhor essa mulher que amava a leitura e a escrita, é preciso ler na
íntegra o Quarto de Despejo. Aqui constam somente trechos da obra cuja ensaísta
pensou ser perspicaz transcrever a fim de mostrar como Carolina Maria de Jesus vivia
de amor num quarto de despejo apesar dos infortúnios que persistiam em sua vida.
Antes de qualquer coisa, desejo salientar que este ensaio não tem o intuito de
romantizar a situação de pobreza econômica vivida por milhares de pessoas deste ou de
outros países, nem tão pouco, acrescentar cores ao amarelo constante nas vidas de
Carolinas, Marias e Joãos transformando-as num lindo arco-íris meritocrático, mas sim
afirmar que amor, essa palavra de luxo como diria Adélia Prado em seu poema
Ensinamento (PRADO, 2020), também mora num quarto de despejo.
Mas o que é mesmo esse tal de amor? Como é possível encontra-lo num
ambiente cercado pela violência, fome, lixo, discriminação, etc.? Para responder essa
questão, creio ser necessário trazer uma definição capaz de nos auxiliar a encontrar essa
palavra de luxo vivendo num quarto de despejo.
A escritora bell hooks, citando M. Scott Peck, define o amor como “a vontade
de se expandir para possibilitar o nosso próprio crescimento ou o crescimento de outra
pessoa” (HOOKS, 2010, s/p), é uma intenção, mas também é uma ação. Nesse sentido,
hooks afirma que podemos expressar o amor por meio da união do sentimento e da
ação. Falar de amor no contexto social vivido por Carolina, para muitos pode soar
estranho. Segundo hooks, “numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a
vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do
racismo e de um sentimento de inferioridade” (2010, s/p), por isso, dado que negros e
negras vem sendo sistematicamente feridos no lugar onde podemos conhecer o amor e
aprender a amar, a capacidade de senti-lo é afetada. Logo parece ser estranho falar de
amor, esse sentimento que é a coisa mais fina do mundo (PRADO, 2020), vivendo na
favela do Canindé ou em outras qualquer: é barraco de lona, é esgoto à céu aberto, é
assassinato, é a cor amarela da fome constante, é faca-laser que corta até a vida
(EVARISTO, 2018). Mas Carolina escreve, e na sua escrita é possível identificar vários
momentos de amor, seja entre ela e seus filhos, seja com outras crianças da favela, ou
quando, no dia 2 de maio de 1958, a autora diz ter a vontade de tratar as pessoas á sua
volta com mais atenção, enviando um sorriso afável para as crianças e também aos
operários (JESUS, 1963).
A própria persistência em ler e escrever pode ser percebida como um ato de
amor, já que a intenção de Carolina é fazer um livro cujo dinheiro arrecadado com as
vendas pudesse ser investido na compra de uma casa, ou seja, em melhorar a condição
de vida de sua família. Carolina escreve enquanto ação escreve enquanto intenção, de
aliviar as angustias de uma mãe solteira, negra, da favela, “catadora de lixo”, e se todo
mundo tem um ideal de vida, o dela é gostar de ler e escrever (JESUS, 1963). E sua
escrita abala a mentalidade daqueles que usufrui do que Lélia Gonzales, em seu texto
Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira (1984), chamou de a divisão racial do espaço.
Segundo Gonzales:
As condições de existência material da comunidade negra remetem a
condicionamentos psicológicos que têm que ser atacados e
desmascarados. Os diferentes índices de dominação das diferentes
formas de produção econômica existentes no Brasil parecem coincidir
num mesmo ponto: a reinterpretação da teoria do “lugar natural” de
Aristóteles. Desde a época colonial aos dias de hoje, percebe-se uma
evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores
e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são
moradias saudáveis, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do
campo e devidamente protegidas por diferentes formas de
policiamento que vão desde os feitores, capitães de mato, capangas,
etc, até à polícia formalmente constituída [...] Já o lugar natural do
negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços,
invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” (...) dos dias de hoje, o
critério tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço
(...) No caso do grupo dominado o que se constata são famílias inteiras
amontoadas em cubículos cujas condições de higiene e saúde são as
mais precárias. Além disso, aqui também se tem a presença policial;
só que não é para proteger, mas para reprimir, violentar e amedrontar.
(GONZALES, 1984, p. 232).
Seguindo essa lógica da dominação e da divisão racial do espaço, também
podemos inferir o que levou a mente daqueles que apresentam o quadro patológico
denominado por Lélia de neurose cultural brasileira (GONZALES, 1984), a questionar a
autoria do livro Quarto de Despejo. Uma vez que o lugar natural do negro é aquele onde
não se encontra as mínimas condições de poder viver, não seria possível que uma
mulher, negra, pobre, semianalfabeta escrevesse um livro que mais tarde se tornou
artigo de luxo (como o amor?) nas prateleiras de milhares de brasileiros e brasileiras e
também do público internacional. E aqui cabe algumas interrogações: se o livro fosse
escrito por um homem branco da classe dominante, sua autoria seria contestada? E se
trocássemos o gênero? Existe alguma diferença entre escrita de homem e escrita de
mulher? Além disso, seria possível fazer a associação entre a cor amarela com a fome se
Carolina não tivesse experimentado aquela situação? E o amargo do fel na língua que
míngua de fome tão minuciosamente narrado? “Faca-laser corta até a vida!”
(EVARISTO, 2018, p. 42). Quer queira a classe dominante ou não, Carolina escreveu,
Carolinas ainda continuam a escrever. Eu escrevo!
Outra passagem do livro onde podemos perceber a existência do amor é no dia
15 de julho de 1955, dia em que a família de Carolina comemorou o aniversário de
nascimento da pequena Vera Eunice. A autora afirma que pretendia comprar um par de
sapatos para a filha, mas a falta de condições econômicas que a mantinha escravizada da
miséria, tornou esse desejo impossível de ser concretizado. Os sapatos encontrados no
lixo, lavados e remendados foi o presente de Vera Eunice. “Que coisa! Faca-laser corta
até a vida!” (EVARISTO, 2018, p. 42). Porém, aqui pode-se notar além da miséria, o
amor. Vera pedia um par de sapatos, Carolina não tinha como comprar. Mas Carolina
amava a sua filha, e uniu esse sentimento com a ação de revirar o lixo até encontrar os
sapatos. Certamente aquele dia foi marcante para Vera, ver a mãe preocupada em lhe
agradar, ver as mãos materna num gesto de amor, lavar e costurar aquele presente que
há muito tempo ela desejava, mas não podia comprar. Nesse contexto de pobreza e
miséria, Carolina inventava formas alternativas de viver e expressar o amor, o que
corrobora com a ideia defendida por hooks. Segundo a autora norte americana:
Num contexto de pobreza, quando a luta pela sobrevivência se faz
necessária, é possível encontrar espaços para amar e brincar, para se
expressar criatividade, para se receber carinho e atenção. Aquele tipo
de carinho que alimenta corações, mentes e também estômagos. No
nosso processo de resistência coletiva é tão importante atender as
necessidades emocionais quanto materiais. (HOOKS, 2010, s/p).
Carolina passou o dia do aniversário da filha indisposta, percebeu que estava
resfriada e o peito doía, por isso, não saiu de noite para catar papel. Somente no outro
dia, com o desaparecimento da indisposição, Carolina pode ir até a venda do Manoel e
vender algumas latas, “tudo quanto eu encontro no lixo eu cato para vender” (JESUS,
1960, p. 9), nos conta a autora. Na noite de domingo, dia 17 de julho de 1955, Carolina
foi para a rua catar papel. Perto do campo do São Paulo Futebol Clube, vários jogadores
que estavam treinando saiam do campo, todos brancos, só um preto, e foi justamente ele
quem começou a insultar aquela mulher preta catadora de papel. O medo de ser
associado á Carolina provavelmente foi o que levou esse jogador a ofender a escritora,
dado que ele participa do grupo de jogadores brancos, sua pele pode até ser preta, mas
sua máscara deve ser branca, como diria um certo Fanon citado por Gonzales (1984).
Esse tipo de tratamento Carolina recebia onde quer que fosse, mesmo na favela
onde morava, era comum chegar em casa e ver seu barraco sujo por alguém que lhe
atirava fezes, ou reclamações de vizinhas e vizinhos que sempre achavam algum motivo
para brigar e ofender os seus filhos, ainda assim ela escreve, “tenho apenas dois anos de
grupo escolar, mas procurei formar o meu caráter” (JESUS, 1960, p. 13). Escreve
Carolina, escreve!
Abandonada pelo pai de seus filhos, Carolina é a única que se preocupa em
manter as crianças. Ela lava, cozinha, cata papel, lata, dorme com fome, e prefere se
abster de uma outra relação conjugal, pois, o medo de viver um relacionamento abusivo
como as vivida por suas vizinhas, ou de acabar não se dedicando às crianças como ela
acredita que deve ser feito, faz com que Carolina não viva esse outro aspcto do amor.
Seja como for, Carolina Maria de Jesus ainda assim viveu de amor.
Por último gostaria de dizer que: faca-laser pode cortar até a vida, mas o amor
cura!
* Professora de Filosofia licenciada pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), mestranda
do Programa de Pós Graduação em Letras: Cultura, Educação e Linguagens (PPGCEL/UESB). Email:
marie.meira@hotmail.com.
2 A edição do livro Quarto de Despejo aqui utilizada foi publicado no ano de 1963.
Referências Bibliográficas
EVARISTO, Conceição. Maria. In: Olhos d’água. 2ª edição, Rio de Janeiro: Pallas
Míni, 2018, p. 41-44.
GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências
Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
HOOKS, Bell. Vivendo de amor. In: Geledes, 2010, s/p. Disponível em:
http://arquivo.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questoes-de-genero/180-artigos-de-
genero/4799-vivendo-de-amor Acesso em: fevereiro de 2020.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. Edição Popular, 1963.
PRADO, Adélia. Ensinamento. In: Escritas.org. Disponível em:
https://www.escritas.org/pt/t/9444/ensinamento Acesso em: fevereiro de 2020.