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Vivendo de amor num quarto de despejo por Maristela Meira

Atualizado: 25 de ago. de 2020

Maristela de Oliveira Meira 1 *


O livro Quarto de Despejo da escritora Carolina Maria de Jesus foi publicado

pela primeira vez no ano de 1960 2 . Logo de início, Audálio Dantas, o jornalista que

auxiliou Carolina Maria de Jesus a publicar seus vinte cadernos utilizados como diário

(cadernos esses coletados no lixo por Carolina) faz uma breve narrativa de como ele

entrou na vida da autora além de situar leitores e leitoras do contexto onde foi produzido

tal obra.


Para os leitores desta edição de Quarto de despejo, é preciso que eu

me apresente. Entrei na história deste livro como jornalista, verde

ainda, com a emoção e a certeza de quem acreditava poder mudar o

mundo. Ou, pelo menos, a favela do Canindé e outras favelas

espalhadas pelo Brasil. Repórter, fui encarregado de escrever uma

matéria sobre uma favela que se expandia na beira do rio Tietê, no

bairro do Canindé. Lá, no rebuliço favelado, encontrei a negra

Carolina, que logo se colocou como alguém que tinha o que dizer. E

tinha! Tanto que, na hora, desisti de escrever a reportagem. (JESUS,

1963, p. 3).


Mas quem é Carolina Maria de Jesus?

Nascida no estado de Minas Gerais, Carolina Maria de Jesus, ou simplesmente

Carolina como gosta de ser chamada, estudou até o segundo ano de uma escola primária

na cidade de Sacramento. Ainda na adolescência, a autora de Quarto de Despejo foi

morar em São Paulo. Mulher, preta, mãe solteira de três filhos (José Carlos, João José e

Vera Eunice), a escritora residia na favela do Canindé, na rua A, barraco nº 9, e foi

exatamente aí, que Carolina escreveu o livro Quarto de Despejo, um livro tão intenso,

original e polêmico que na época de sua publicação atingiu “as alturas dos 100 mil

exemplares” (JESUS, 1963, p. 4), algo que, nas palavras de Audálio Dantas, “rompeu a

rotina das magras edições de dois, três mil exemplares, no Brasil” (JESUS, 1963, p. 4).

Para conhecer melhor essa mulher que amava a leitura e a escrita, é preciso ler na

íntegra o Quarto de Despejo. Aqui constam somente trechos da obra cuja ensaísta

pensou ser perspicaz transcrever a fim de mostrar como Carolina Maria de Jesus vivia

de amor num quarto de despejo apesar dos infortúnios que persistiam em sua vida.

Antes de qualquer coisa, desejo salientar que este ensaio não tem o intuito de

romantizar a situação de pobreza econômica vivida por milhares de pessoas deste ou de

outros países, nem tão pouco, acrescentar cores ao amarelo constante nas vidas de

Carolinas, Marias e Joãos transformando-as num lindo arco-íris meritocrático, mas sim

afirmar que amor, essa palavra de luxo como diria Adélia Prado em seu poema

Ensinamento (PRADO, 2020), também mora num quarto de despejo.

Mas o que é mesmo esse tal de amor? Como é possível encontra-lo num

ambiente cercado pela violência, fome, lixo, discriminação, etc.? Para responder essa

questão, creio ser necessário trazer uma definição capaz de nos auxiliar a encontrar essa

palavra de luxo vivendo num quarto de despejo.

A escritora bell hooks, citando M. Scott Peck, define o amor como “a vontade

de se expandir para possibilitar o nosso próprio crescimento ou o crescimento de outra

pessoa” (HOOKS, 2010, s/p), é uma intenção, mas também é uma ação. Nesse sentido,

hooks afirma que podemos expressar o amor por meio da união do sentimento e da

ação. Falar de amor no contexto social vivido por Carolina, para muitos pode soar

estranho. Segundo hooks, “numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a

vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do

racismo e de um sentimento de inferioridade” (2010, s/p), por isso, dado que negros e

negras vem sendo sistematicamente feridos no lugar onde podemos conhecer o amor e

aprender a amar, a capacidade de senti-lo é afetada. Logo parece ser estranho falar de

amor, esse sentimento que é a coisa mais fina do mundo (PRADO, 2020), vivendo na

favela do Canindé ou em outras qualquer: é barraco de lona, é esgoto à céu aberto, é

assassinato, é a cor amarela da fome constante, é faca-laser que corta até a vida

(EVARISTO, 2018). Mas Carolina escreve, e na sua escrita é possível identificar vários

momentos de amor, seja entre ela e seus filhos, seja com outras crianças da favela, ou

quando, no dia 2 de maio de 1958, a autora diz ter a vontade de tratar as pessoas á sua

volta com mais atenção, enviando um sorriso afável para as crianças e também aos

operários (JESUS, 1963).

A própria persistência em ler e escrever pode ser percebida como um ato de

amor, já que a intenção de Carolina é fazer um livro cujo dinheiro arrecadado com as

vendas pudesse ser investido na compra de uma casa, ou seja, em melhorar a condição

de vida de sua família. Carolina escreve enquanto ação escreve enquanto intenção, de


aliviar as angustias de uma mãe solteira, negra, da favela, “catadora de lixo”, e se todo

mundo tem um ideal de vida, o dela é gostar de ler e escrever (JESUS, 1963). E sua

escrita abala a mentalidade daqueles que usufrui do que Lélia Gonzales, em seu texto

Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira (1984), chamou de a divisão racial do espaço.

Segundo Gonzales:


As condições de existência material da comunidade negra remetem a

condicionamentos psicológicos que têm que ser atacados e

desmascarados. Os diferentes índices de dominação das diferentes

formas de produção econômica existentes no Brasil parecem coincidir

num mesmo ponto: a reinterpretação da teoria do “lugar natural” de

Aristóteles. Desde a época colonial aos dias de hoje, percebe-se uma

evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores

e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são

moradias saudáveis, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do

campo e devidamente protegidas por diferentes formas de

policiamento que vão desde os feitores, capitães de mato, capangas,

etc, até à polícia formalmente constituída [...] Já o lugar natural do

negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços,

invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” (...) dos dias de hoje, o

critério tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço

(...) No caso do grupo dominado o que se constata são famílias inteiras

amontoadas em cubículos cujas condições de higiene e saúde são as

mais precárias. Além disso, aqui também se tem a presença policial;

só que não é para proteger, mas para reprimir, violentar e amedrontar.

(GONZALES, 1984, p. 232).


Seguindo essa lógica da dominação e da divisão racial do espaço, também

podemos inferir o que levou a mente daqueles que apresentam o quadro patológico

denominado por Lélia de neurose cultural brasileira (GONZALES, 1984), a questionar a

autoria do livro Quarto de Despejo. Uma vez que o lugar natural do negro é aquele onde

não se encontra as mínimas condições de poder viver, não seria possível que uma

mulher, negra, pobre, semianalfabeta escrevesse um livro que mais tarde se tornou

artigo de luxo (como o amor?) nas prateleiras de milhares de brasileiros e brasileiras e

também do público internacional. E aqui cabe algumas interrogações: se o livro fosse

escrito por um homem branco da classe dominante, sua autoria seria contestada? E se

trocássemos o gênero? Existe alguma diferença entre escrita de homem e escrita de

mulher? Além disso, seria possível fazer a associação entre a cor amarela com a fome se

Carolina não tivesse experimentado aquela situação? E o amargo do fel na língua que

míngua de fome tão minuciosamente narrado? “Faca-laser corta até a vida!”

(EVARISTO, 2018, p. 42). Quer queira a classe dominante ou não, Carolina escreveu,

Carolinas ainda continuam a escrever. Eu escrevo!


Outra passagem do livro onde podemos perceber a existência do amor é no dia

15 de julho de 1955, dia em que a família de Carolina comemorou o aniversário de

nascimento da pequena Vera Eunice. A autora afirma que pretendia comprar um par de

sapatos para a filha, mas a falta de condições econômicas que a mantinha escravizada da

miséria, tornou esse desejo impossível de ser concretizado. Os sapatos encontrados no

lixo, lavados e remendados foi o presente de Vera Eunice. “Que coisa! Faca-laser corta

até a vida!” (EVARISTO, 2018, p. 42). Porém, aqui pode-se notar além da miséria, o

amor. Vera pedia um par de sapatos, Carolina não tinha como comprar. Mas Carolina

amava a sua filha, e uniu esse sentimento com a ação de revirar o lixo até encontrar os

sapatos. Certamente aquele dia foi marcante para Vera, ver a mãe preocupada em lhe

agradar, ver as mãos materna num gesto de amor, lavar e costurar aquele presente que

há muito tempo ela desejava, mas não podia comprar. Nesse contexto de pobreza e

miséria, Carolina inventava formas alternativas de viver e expressar o amor, o que

corrobora com a ideia defendida por hooks. Segundo a autora norte americana:


Num contexto de pobreza, quando a luta pela sobrevivência se faz

necessária, é possível encontrar espaços para amar e brincar, para se

expressar criatividade, para se receber carinho e atenção. Aquele tipo

de carinho que alimenta corações, mentes e também estômagos. No

nosso processo de resistência coletiva é tão importante atender as

necessidades emocionais quanto materiais. (HOOKS, 2010, s/p).

Carolina passou o dia do aniversário da filha indisposta, percebeu que estava

resfriada e o peito doía, por isso, não saiu de noite para catar papel. Somente no outro

dia, com o desaparecimento da indisposição, Carolina pode ir até a venda do Manoel e

vender algumas latas, “tudo quanto eu encontro no lixo eu cato para vender” (JESUS,

1960, p. 9), nos conta a autora. Na noite de domingo, dia 17 de julho de 1955, Carolina

foi para a rua catar papel. Perto do campo do São Paulo Futebol Clube, vários jogadores

que estavam treinando saiam do campo, todos brancos, só um preto, e foi justamente ele

quem começou a insultar aquela mulher preta catadora de papel. O medo de ser

associado á Carolina provavelmente foi o que levou esse jogador a ofender a escritora,

dado que ele participa do grupo de jogadores brancos, sua pele pode até ser preta, mas

sua máscara deve ser branca, como diria um certo Fanon citado por Gonzales (1984).

Esse tipo de tratamento Carolina recebia onde quer que fosse, mesmo na favela

onde morava, era comum chegar em casa e ver seu barraco sujo por alguém que lhe

atirava fezes, ou reclamações de vizinhas e vizinhos que sempre achavam algum motivo


para brigar e ofender os seus filhos, ainda assim ela escreve, “tenho apenas dois anos de

grupo escolar, mas procurei formar o meu caráter” (JESUS, 1960, p. 13). Escreve

Carolina, escreve!

Abandonada pelo pai de seus filhos, Carolina é a única que se preocupa em

manter as crianças. Ela lava, cozinha, cata papel, lata, dorme com fome, e prefere se

abster de uma outra relação conjugal, pois, o medo de viver um relacionamento abusivo

como as vivida por suas vizinhas, ou de acabar não se dedicando às crianças como ela

acredita que deve ser feito, faz com que Carolina não viva esse outro aspcto do amor.

Seja como for, Carolina Maria de Jesus ainda assim viveu de amor.

Por último gostaria de dizer que: faca-laser pode cortar até a vida, mas o amor

cura!


* Professora de Filosofia licenciada pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), mestranda

do Programa de Pós Graduação em Letras: Cultura, Educação e Linguagens (PPGCEL/UESB). Email:

marie.meira@hotmail.com.

2 A edição do livro Quarto de Despejo aqui utilizada foi publicado no ano de 1963.



Referências Bibliográficas


EVARISTO, Conceição. Maria. In: Olhos d’água. 2ª edição, Rio de Janeiro: Pallas

Míni, 2018, p. 41-44.


GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências

Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.


HOOKS, Bell. Vivendo de amor. In: Geledes, 2010, s/p. Disponível em:

http://arquivo.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questoes-de-genero/180-artigos-de-

genero/4799-vivendo-de-amor Acesso em: fevereiro de 2020.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. Edição Popular, 1963.

PRADO, Adélia. Ensinamento. In: Escritas.org. Disponível em:

https://www.escritas.org/pt/t/9444/ensinamento Acesso em: fevereiro de 2020.

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