O misericordioso padre se espantou em ver o negro faiscador tentando ficar de pé.
O experiente médico ficou nauseabundo ao sentir o cheiro das úlceras purulentas misturadas com a
bosta de cavalo.
— Só quero morrer em pé.
João tinha sido torturado.
Açoitado.
Flagelado.
Golpeado.
Arrastado pelas ruas.
Mas não contou nada.
— Devo ser importante: dois ilustres vinheiram me ver! — fez a graça sem rir.
O padre batalharia para que João confessasse os seus pecados veniais, capitais e onde a sua corja
estava escondida.
Já o aplicado médico desejava apenas que ele balbuciasse onde havia escondido o lendário tesouro.
E o negro foi ficando de pé.
Pingando sangue, terra e baba.
João confessou, sim, que sentia saudades do tempo de menino.
Dos matos.
Dos rios.
Dos barulhos.
Das histórias das terras dos seus.
Das rezas ensinadas pelo Frei das Neves.
— Sou João Criolo, filho de Jeremias Congo e Maria Criola. — Tossiu, e uma chaga vazou.
O bondoso padre pediu que declarasse todos os pecados.
O atencioso médico pensou em ir embora, o dia estava tão bonito!
— Meu pai morreu rapazote, sabe? Disenteria! Minha mãe, louca de tanto trabalhar no frio, mas
teve tempo para me ensinar o caminho do bem, sabe, moço?
Contou, voz molhada, que tinha saudades do tempo de andar de cabeça erguida pela vila.
— O meu senhor, o finado Frei das Neves, era muito bondoso!
Mencionou, meio rindo e meio lamentando, que obedeceu ao seu senhor e foi garimpar nas terras
reais.
Ali foi preso.
Não fugiu: Homem não corre de homem, já dizia a minha mãe.
Ficou pertencendo ao rei. Um novo senhor de muitas vozes e sem um único rosto.
Ficava no chicote dos fulares. De manhã, de tarde e antes de dormir.
Toda tarde tinha palmatória.
— … mas me chamarem de moleque, num guentei, moço!
Riu.
Vazou.
Tossiu.
O padre se benzeu.
O médico sentiu fome.
— Também prometeram ao meu senhor que eu podia voltar. Mas não cumpriram. Nada pesa menos
que uma promessa, não é?
Fugiu.
Foi para onde mais conhecia: as minas.
Mas foram atrás.
Quiseram pegar.
Emboscaram.
4
Não o pegaram.
Lutou.
Minerou.
Vingou.
Até matou.
Foi atrás da pedra de cada dia.
Outros faisqueiros vieram e juntos puderam fazer nascer da terra os sustentos.
— Compramos a alforria de muitos de nós. Mas ninguém quis dar a minha: meu senhor morreu,
que-jesus-tenha-a-sua-alma!
O desatento médico atestou que ele poderia até ficar bom.
E o correto padre finalizou: se confessar.
João falou que queria voltar a caminhar sem olhar para os lados.
Beber sua aguardente.
Dormir com os dois olhos fechados.
Vestir sapatos.
Namorar uma madalena qualquer.
O corpo curvou.
Engasgou com a baba.
Sangrou mais.
Ficou de quatro no chão.
— As pedras foram colocadas no seio da terra por Deus, por isso pertencem a todos…
O experimentado padre tentou consolá-lo.
O desavisado médico achou que tinha ouvido um trovão.
João deu um sorriso de canto de boca. Quase ninguém viu.
Disse que não tinha medo de morrer e que até seria bom um descanso.
Não queria mais temer que um irmão de lavra, calejado como ele, sofrido e com bicho-de-pé, caísse
em tentação e o denunciasse por um saco de farinha.
— Liberdade só posso esperar…
Falou que vista não encontrava mais os veios brilhantes.
Afirmou que não conseguia mais sentir o cheiro de uma bela pedra.
Balbuciou que os ouvidos não davam mais o gosto da manhã.
O compadecido padre achou que ouviu o moribundo cantar.
O sábio médico pensou na negrinha da casa dele.
João Criolo queria descansar.
Rezou pelo Frei das Neves.
Pela mãe.
Por sua alma...
Autoria de Plínio Camillo
Preto de pai e mãe
Escrevinhador ️
Ator e Diretor teatral
Educador social
Palestrante
Promotor de oficinas de escrita
Roteirista
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