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JOÃO CRIOLO por Plínio Camillo

Atualizado: 25 de ago. de 2020

O misericordioso padre se espantou em ver o negro faiscador tentando ficar de pé.

O experiente médico ficou nauseabundo ao sentir o cheiro das úlceras purulentas misturadas com a

bosta de cavalo.

— Só quero morrer em pé.

João tinha sido torturado.

Açoitado.

Flagelado.

Golpeado.

Arrastado pelas ruas.

Mas não contou nada.

— Devo ser importante: dois ilustres vinheiram me ver! — fez a graça sem rir.

O padre batalharia para que João confessasse os seus pecados veniais, capitais e onde a sua corja

estava escondida.

Já o aplicado médico desejava apenas que ele balbuciasse onde havia escondido o lendário tesouro.

E o negro foi ficando de pé.

Pingando sangue, terra e baba.

João confessou, sim, que sentia saudades do tempo de menino.

Dos matos.

Dos rios.

Dos barulhos.

Das histórias das terras dos seus.

Das rezas ensinadas pelo Frei das Neves.

— Sou João Criolo, filho de Jeremias Congo e Maria Criola. — Tossiu, e uma chaga vazou.

O bondoso padre pediu que declarasse todos os pecados.

O atencioso médico pensou em ir embora, o dia estava tão bonito!

— Meu pai morreu rapazote, sabe? Disenteria! Minha mãe, louca de tanto trabalhar no frio, mas

teve tempo para me ensinar o caminho do bem, sabe, moço?

Contou, voz molhada, que tinha saudades do tempo de andar de cabeça erguida pela vila.

— O meu senhor, o finado Frei das Neves, era muito bondoso!

Mencionou, meio rindo e meio lamentando, que obedeceu ao seu senhor e foi garimpar nas terras

reais.

Ali foi preso.

Não fugiu: Homem não corre de homem, já dizia a minha mãe.

Ficou pertencendo ao rei. Um novo senhor de muitas vozes e sem um único rosto.

Ficava no chicote dos fulares. De manhã, de tarde e antes de dormir.

Toda tarde tinha palmatória.

— … mas me chamarem de moleque, num guentei, moço!

Riu.

Vazou.

Tossiu.

O padre se benzeu.

O médico sentiu fome.

— Também prometeram ao meu senhor que eu podia voltar. Mas não cumpriram. Nada pesa menos

que uma promessa, não é?

Fugiu.

Foi para onde mais conhecia: as minas.

Mas foram atrás.

Quiseram pegar.

Emboscaram.


4


Não o pegaram.

Lutou.

Minerou.

Vingou.

Até matou.

Foi atrás da pedra de cada dia.

Outros faisqueiros vieram e juntos puderam fazer nascer da terra os sustentos.

— Compramos a alforria de muitos de nós. Mas ninguém quis dar a minha: meu senhor morreu,

que-jesus-tenha-a-sua-alma!

O desatento médico atestou que ele poderia até ficar bom.

E o correto padre finalizou: se confessar.

João falou que queria voltar a caminhar sem olhar para os lados.

Beber sua aguardente.

Dormir com os dois olhos fechados.

Vestir sapatos.

Namorar uma madalena qualquer.

O corpo curvou.

Engasgou com a baba.

Sangrou mais.

Ficou de quatro no chão.

— As pedras foram colocadas no seio da terra por Deus, por isso pertencem a todos…

O experimentado padre tentou consolá-lo.

O desavisado médico achou que tinha ouvido um trovão.

João deu um sorriso de canto de boca. Quase ninguém viu.

Disse que não tinha medo de morrer e que até seria bom um descanso.

Não queria mais temer que um irmão de lavra, calejado como ele, sofrido e com bicho-de-pé, caísse

em tentação e o denunciasse por um saco de farinha.

— Liberdade só posso esperar…

Falou que vista não encontrava mais os veios brilhantes.

Afirmou que não conseguia mais sentir o cheiro de uma bela pedra.

Balbuciou que os ouvidos não davam mais o gosto da manhã.

O compadecido padre achou que ouviu o moribundo cantar.

O sábio médico pensou na negrinha da casa dele.

João Criolo queria descansar.

Rezou pelo Frei das Neves.

Pela mãe.

Por sua alma...


Autoria de Plínio Camillo

Preto de pai e mãe

Escrevinhador ️

Ator e Diretor teatral

Educador social

Palestrante

Promotor de oficinas de escrita

Roteirista





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