Todos os dias era a mesma coisa. Ela gritava por ele da calçada de casa
para que viesse tomar banho. Ele entrava correndo, sorrindo e todo suado,
segurando a bola com uma das mãos. Era a sua brincadeira preferida. Dizia
que quando crescesse seria um craque do futebol. Ficaria muito rico e
compraria uma casa bem grande para morar com a mãe e o irmão. Ela achava
bonito quando ele fantasiava assim, então, não o contrariava. Dizia que ele
poderia ser qualquer coisa nessa vida, desde que estudasse muito. “A gente só
tem as coisas com estudo”, ela repetia todos os dias antes de vê-lo sair para o
colégio. Dona Raimunda trabalhava lavando e engomando a roupa de algumas
famílias do bairro vizinho. Moravam de aluguel numa casinha humilde; logo,
todo dinheiro que ganhava era investido na educação dos filhos. A situação
ficou mais difícil depois da morte do marido, então ela fazia o que podia para
não deixar faltar nada em casa.
Sempre que podia ia até a escola dos garotos, conversar com a
professora e saber como eles estavam. Explicava que não sabia ler porque,
quando moça, não tinha cabeça para as letras. Ficava ali sentada na sala de
aula só pensando em como poderia arrumar um emprego e ajudar a mãe a sair
daquela casa. O pai, um alcoólatra, todos os dias batia o ponto no bar e nas
costas de mãe e filha. Uma violência só. A vida em família virara um inferno.
Gastava o pouco que ganhava com bebida.
A professora sempre elogiava muito os meninos, principalmente Lucas.
Ela mostrava o seu caderno com letra caprichada. “Esse menino vai longe”, ela
dizia. Em casa, ele também era um bom garoto. Sentia pena de ver a mãe
chegar cansada e ainda ter que fazer as coisas. Por isso, antes de correr para
o jogo de futebol, lavava a louça e passava uma vassoura na casa. Outra
grande paixão, além do futebol, era o desenho. E o danado tinha talento para a
coisa! Passava horas dentro da rede com um caderno velho no colo,
desenhando tudo quanto era artista.
Mas seu sonho mesmo era ser jogador de futebol. Sem que ele
soubesse, Raimunda tinha mandado fazer um bolinho pro seu aniversário.
Faltavam só três dias. 12 anos. Como o tempo passa voando. Até parece que
foi um dia desses que ele estava chutando sua barriga. Bem coisa de jogador
mesmo. Ela sorria. Agora ele estava ali, deitado em seu colo. Ela quase nem
conseguia segurá-lo direito. Enquanto alisava seu cabelo, ralhava baixinho que
ele precisava tomar um banho e tirar aquela roupa suja. Sangue. Uma bala
perdida achara o corpo negro de Lucas no momento exato em que ele gritava
gol!
Por: Ana Paula Campos
Educadora e Ativista
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