top of page

A INSTRUMENTALIZAÇÃO PARA O COMBATE AO RACISMO por Ricardo Nagô

Atualizado: 25 de ago. de 2020

No Brasil, a escravidão foi vendida como um sistema brando e não muito agressivo, como acontecia com a escravidão instaurada nos Estados Unidos, pelos britânicos. Uma dessas concessões de bondade, dos brancos para com os negros, era o "intercasamento" entre mulheres pretas e homens brancos. Porém, o que de fato aconteceu foi o estupro em massa de mulheres negras pelos seus senhores, o que auxiliou no processo de fetichização da mulher africana e, posteriormente, da mulher preta brasileira. Daí, tempos o conceito da mulata. Quem é a mulata?

Além desse estupro, que era extremamente naturalizado, as sinhás que engravidavam dos seus esposos ordenavam que as mulheres pretas, com função de procriação, também engravidassem, para produzir leite para os seus filhos brancos. Vale lembrar que a proporção de mulheres e homens pretos era de 1/5. Essa política foi crucial para instaurar um processo de higienização racial do país, de acordo com preceitos da eugenia.

É importante que discutamos que a branquitude criou, estruturou e tem naturalizado o racismo para tentar definir o local do povo preto, indígena e povos orientais. Entretanto, essa branquitude brasileira não percebeu que também é racializada, uma vez que não apresenta pertencimento ao grupo caucasiano espalhado pelo EUA e Europa. E, nesse sentido, essas pessoas brancas serão lidas como latino-americanas. E aqui quero saudar o Mendonça e o Dorneles, que nos presentearam com o filme Bacurau.

A cena em que os brancos sulestinos tentam se comparar aos estadunidense é épica. Aquele é o final para vocês, brancos que não entendem que são racializados e que "Lugar de Fala" é uma posição ética. Para falar sobre, eu quero invocar a Filósofa Djamila Ribeiro.

Todos nós temos local de fala porque ocupamos espaços na sociedade e somos lidos de diversas formas. Dentre elas, somos lidos pela opressão. O que as pessoas costumam fazer é confundir local de fala com representatividade e acabam se isentando de discussões pertinentes, como o racismo, lgbtqfobia, xenofobia, dentre outros.

Vejamos: você, enquanto pessoa branca, tem local de fala sobre o racismo para problematizar de que forma você pode ajudar no combate a essa discriminação, conversando com os seus pares e entendendo que o racismo é estrutural e você pode ajudar a desnaturalizá-lo. Indague-se sempre: não sou negro, mas de que forma eu posso ajudar no combate ao racismo? Será que costumo cometer comportamentos racistas? Caso sim, o que há 99,99% de ser positivo, como eu posso evitar?

Outro exemplo: um hétero deve se posicionar no combate a homofobia. Possivelmente, você já chamou seu amigo hétero de viado, pra tentar encher o saco dele. Com certeza você já chamou algum saopaulino de gay, numa tentativa de fazer chacota, porque associa esse tipo de discriminação com piada. Mas, não deve acontecer dessa forma, porque a orientação sexual não deve ser banalizada e levada como ponto de brincadeira, o que tem matado muitas pessoas LGBTQUIA+. Infelizmente, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo.

Conseguiram entender o que é local de fala? Ótimo. Agora vamos passar para representatividade: enquanto o branco se posiciona na luta antirracista ele não pode representar essa pauta. Aprendam, numa reunião, ou movimento sobre a luta contra a discriminação racial contra negros e indígenas, ouçam sempre o que negros e indígenas têm para falar. Mas, não se calem, lembrem-se que vocês têm local de fala, apesar de não possuir representatividade nessa pauta.

Vamos voltar no tempo, mais precisamente no dia 14 de maio de 1888, para falar sobre processos políticos que institucionalizaram o racismo. Antes da mão da branca assinar a lei áurea, que aqui eu quero nomear como a “Lei do Genocídio”, houve muitas revoltas dos povos negros da diáspora africana e de negros nascidos no Brasil. Dentre elas, destacam-se a Inconfidência Baiana (1798), Revolta dos Malês (1835), Balaiada (1831-1840). Além dos pretos abolicionistas como Luiz Gama, José do Patrocínio, André Rebouças e o grande levante do povo preto: o Quilombo dos Palmares.

Com a instauração dessas insurreições e a pressão político-econômica que a Inglaterra fazia no Brasil, a branca teve que "oficializar a liberdade". Após o episódio, os pretos não tiveram acesso a cidadania. Foram expulsos das fazendas e tiveram que se aglomerar em favelas. Outros decidiram permanecer trabalhando nas fazendas para garantir a comida e a sobrevivência, mesmo na precariedade.

Os senhores de engenho foram indenizados, e uma política de Eugênia foi instaurada em nosso país. De que forma? Muitos médicos, juristas, políticos, dentre outros acreditavam que um país mestiço estaria fadado ao subdesenvolvimento. Essa ideia era importada da Europa e muitos intelectuais e escritores começaram a adotar como um verdadeiro sistema de erradicação do povo preto em solo brasileiro. Qual seria a resolução para este problema? Mediante a esses pensamentos eugênicos, a solução seria abrir as portas do Brasil, para que os imigrantes europeus pudessem criar aqui as suas colônias.

Gilberto Freyre (Recife), dono da obra "Casa Grande & Senzala, exportou para o mundo uma ideia de “Democracia Racial” no Brasil. Segundo o famigerado escritor: a escravidão no Brasil havia sido tão benéfica que “o negro apresentou um processo de simbiose com a cana de açúcar”. Ou seja, houve uma interação entre essas duas espécies: o humano e o vegetal, de forma que os dois só conseguiram evoluir graças a essa interação.

Raimundo Nina Rodrigues, médico baiano, importava ideias eugênicas de escolas italianas, nas quais a utilização da Craniologia e Frenologia seriam cruciais para o entendimento do indivíduo preto como menos evoluído. Essas duas metodologias avaliavam o formato e tamanho do crânio de homens e mulheres pretas, e, segundo ele, essas pessoas estariam fadadas ao cometimento de crimes. Juntamente com Silvio Romero, jurista da Faculdade de Direito de Recife, os dois passaram a estabelecer dois sistemas de códigos penais, uma para indivíduos brancos e outro para indivíduos negros. Quem seriam os mais prejudicado com isso tudo? Os indivíduos negros.

Monteiro Lobato, outro escritor ovacionado no país, porém racista, sempre caminhou junto com a política da Eugênia e em uma de suas diversas cartas dirigidas a amigos em 1908, afirma: "que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança! Talvez a salvação venha de São Paulo e outras zonas que intensamente se injetam de sangue europeu". Tá surpreso com o pai da Cuca? Então, se questione sobre os feitos da tia Nastácia, os quais eram creditados pela Dona Benta.

Com isso, intelectuais dentro das Faculdades de Direito de Recife e São Paulo e das Faculdades de Medicina na Bahia e Rio de Janeiro, além de escritores brancos que defendiam essa política de “higienização” trataram de estruturar e naturalizar a discriminação contra povos negros e indígenas no país. Tal fator, abriu espaço para o Genocídio do povo preto, do encarceramento em massa, do estupro da mulher preta e do assassinato de uma criança preta, por mãos brancas, mãos essas que permanece em liberdade. E por falar no genocídio do povo preto, invoco um dos mártires do Movimento Negro Brasileiro.

Abdias do nascimento, neto de escravos, pais pretos mineiros, nasceu em São Paulo e desde muito cedo sentiu na pele o poder de uma instituição racista. Pobre, aos 14 anos tornou-se guardador de livros e esse foi o seu primeiro contato com a literatura. Se alistou no exército brasileiro e, mesmo assim, episódios do racismo cotidiano o perseguia. Foi preso, por se envolver numa briga para defender a sua cidadania e, mediante a muitos desafios se formou em Economia na UFRJ.

Graças ao Abdias, o Teatro Experimental Negro, o Museu de Arte Negra, o Instituto de Pesquisas Afro-Barsileiras, o Memorial Zumbi e o Movimento Negro Unificado foram criados. Ele engajou o Movimento Negro contemporâneo, que marcou nossa história com um dos primeiros jornais voltado para o enaltecimento do povo preto: "Clarim da Alvorada". Atuou na Frente Negra Brasileira, que visava conquistar posições para o negro em todas os setores da sociedade brasileira. Na convenção Nacional do Negro, em 1945, houve pela primeira vez a definição do racismo como crime de lesa pátria, políticas públicas de amparo a população afro-brasileira foram criadas, além das primeiras discussões sobre o sistema de cotas nas instituições de ensino, que só veio a ser implementado em algumas universidades em 2002 e passou ser lei no ano de 2012.

Assim como o Abdias, outras mulheres negras também foram importante para injetar força no Movimento Negro. Lélia Gonzalez foi a primeira a acusar a interseccionalidade que feria a sua cidadania enquanto mulher preta, apesar de tal termo ser utilizado anos depois pela Kimberlé Crenshaw. Lélia também foi corajosa a explanar o machismo dentro do movimento negro e sua voz ecoou por Luiza Bairros, Sueli Carneiro e Beatriz do Nascimento.

Graças ao Movimento Negro, muitos quilombos e quilombolas foram reconhecidos enquanto território e povos desses territórios; houve a criação da Fundação Cultural Palmares, que visa a preservação de valores culturais, históricos, sociais e econômicos do povo preto e a lei 10639/2003 foi criada para a promoção do ensino sobre a história dos africanos e dos afro-brasileiros nos níveis de educação básico, médio e superior do país.

E você ainda vem me dizer que o negro brasileiro é pacífico e não luta pelas suas demandas? Para responder a sua pergunta é importante que saibamos contextualizar a necropolítica em que estamos inseridos, atualmente, e aqui invoco o Achille Mbembe para discutir sobre. A necropolítica é um sistema no qual o governo, que geralmente é ocupado por um homem branco e heterossexual, acaba escolhendo quem e a forma que as pessoas devem morrer. Sobretudo as pessoas pretas das periferias.

Desde suas primeiras publicações, o Abdias do Nascimento já denunciava o "Genocídio do Negro Brasileiro" e, desde então, o nosso povo continua sendo o alvo principal dessa instituição racista. Comumente, em comunidades periféricas, a polícia tem assassinado crianças inocentes, provocando inflamações dos pretos de dentro e fora do movimento. Além das comunidades periféricas das metrópoles, muitas mulheres, homens e crianças têm sido assassinados no sertão nordestino, apesar de não terem seus casos televisionados e visibilizados.

Mediante a pandemia de covid-19, que tem matado muitas pessoas das periferias, habitada em sua maioria por pessoas pretas, o governo tem financiado a instituição policial racista e esta, por sua vez, continua matando inocentes em favelas, com tiros na “cabecinha”. Por mais dolorosas e revoltante que sejam essas mortes, não podemos cair na armadilha da necropolítica, expondo nossas vidas ao vírus, ao nos aglomerarmos em manifestações. Esse pensamento é racional, para evitarmos um colapso maior no sistema precário de saúde. Mas o nó na garganta, a justiça branca que nos mata, acaba nos obrigando a escolher ir para as ruas tentar lutar contra esse sistema.

Nesse caso, enquanto cientista, aconselho que os meus permaneçam em suas casas, para nos organizarmos e, após a pandemia, se infiltrarem dentro do sistema para quebrá-lo por dentro. Mas, enquanto homem preto, gay e nordestino, sinto a necessidade de bradar pela a minha vida e pela vida dos meus. A partir daqui, sugiro a instrumentalização, através da leitura das obras dos nossos intelectuais, desde Abdias e Lélia Gonzáles até nomes como Djamila Ribeiro, Carla Akotirene, Joyce Berth, Silvio Almeida, Adilson Moreira, dentre outros intelectuais negros que têm sido faróis na luta do movimento dentro do nosso país.

Ricardo Nagô

Recife – PE


13 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
Post: Blog2_Post

Subscribe Form

Thanks for submitting!

©2020 por Quilombo da Ciência. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page