Como trabalho em escolas públicas, sempre que converso com os/as
alunos/as sobre as religiões de matrizes africanas, eles/as geralmente fazem
relação com algo maligno, associando os “macumbeiros” ao “demônio”.
Infelizmente é esse o vocabulário usado para ilustrar os saberes que eles/as
têm sobre o assunto. Tais crianças reproduzem a história única que ouviram de
seus familiares e vizinhos, que, por sua vez, também desconhecem o cotidiano
de um terreiro.
Assumindo seu lugar de fala e ajudando-nos a reelaborar nosso
pensamento sobre o candomblé, Lhasa Calassia nos traz algumas reflexões.
No Ilê Olorum, ela é Ekede, sacerdotisa responsável pelos médiuns corpóreos.
Não incorpora e sua função é cuidar dos médiuns incorporados, dentre outras
atribuições.
Ela lembra que seus pais, apesar de serem candomblecistas, a
batizaram na igreja católica quando ainda era um bebê, e ela frequentou por
alguns anos o Colégio Salesiano. “Eles queriam que eu tivesse a experiência
com o cristianismo e nunca me privaram de escolher minha própria religião”,
rememora. Para Lhasa, essa lembrança é importante uma vez que recém-
nascidos de pais/mães cristãos/ãs são batizados na igreja, mas apenas os
pais/mães que iniciam seus/as filhos/as nas religiões de matriz africana, como
o candomblé, a umbanda e a jurema, são questionados e criticados.
Outro ponto envolvido em muita polêmica é o sacrifício de animais,
prática, aliás, comumente relatada em passagens bíblicas do Antigo
Testamento.
A despeito disso, Lhasa recorda de uma amiga que se posicionou
contrariamente ao ritual, ao que ela respondeu: “Você foi criada no interior e já
viu sua mãe matar galinha. É a mesma coisa. A diferença é que nós temos o
cuidado de molar o animal de forma que ele não sofra. Além disso, faz parte da
ritualística, a nossa alimentação. Tudo é aproveitado.”
Sua irmã, membro do Ilê Olorum, tem um grupo de proteção para
animais de rua, cuidando da castração e da adoção de gatos e cachorros.
Lhasa reforça que é fundamental que a sociedade saiba que o povo de terreiro,
ao contrário do que propaga o imaginário popular, não faz “milacria como
costurar boca de sapo, ou matar gato preto”. Para ela, tudo isso se justifica
pelo racismo “que nos impõe que tudo que é associado ao povo africano, é
feio, mau e pobre. Qualquer outro tipo de religião é mais respeitado que as
religiões de matriz africana, inclusive até os ateus são mais respeitados”,
declara.
Sobre a divisão de funções no terreiro, Lhasa revela que estas são
divididas por gênero, mas que a função mais importante – Yalorixá (mulher) e
Babalorixá (homem) – é assumida sem essa distinção. Ela ainda releva que “é
a mulher quem manda lá em casa, apesar dos meus pais biológicos serem os
patronos do Ilê, quem manda é mainha”, conclui.
Sobre o racismo que sofre no ambiente de trabalho ela relata com
tristeza: “A partir do momento que me coloco como religiosa de matriz africana,
tudo que dá errado na empresa ou na vida dos colegas é porque, segundo
eles, mexo com coisas de magia negra ou não tenho uma áurea boa, ou, ainda,
porque não acredito em Jesus.” Todavia, quando está “paramentada” em
algum outro espaço público, as pessoas se aproximam, querem saber mais e
até elogiam. “Acredito que pelo fato de ser realmente empoderada”, ela conclui.
Como contribuição para as leitoras de minha coluna, perguntei como
uma menina/mulher pode atingir esse grau de empoderamento, e ela afirmou:
“É difícil porque a religião em si pede uma espécie de voto de humildade que
pode ser confundido com subserviência. Para se empoderar socialmente a
pessoa tem que dominar todos os argumentos necessários para não aceitar a
demonização da nossa religião. A principal ferramenta é acabar com esses
paradigmas de que somos associados ao mal. Somos descendentes de uma
dinastia de reis e rainhas, e nossa cultura foi totalmente deturpada e
marginalizada como o nosso povo”.
Conheça o Ilê Olorum!
Lhasa Calassia é uma mulher de luta!
Por: Ana Paula Campos
Educadora e Ativista